quinta-feira, 29 de julho de 2010

Do amor

O amor é veneno. Amar deixa o mais soturno dos humanos ébrio. Eu, que costumava medir minha postura, conter meus gestos, eu, que costumava falar baixo e respeitar as leis sociais... Amei. E então tornei-me samba, tornei-me o batuque a decibéis ensurdecedores, eu amei e abri os braços, perdi o medo da altura, subi na corda-bamba rindo, deliciando-me de festa, prosa, música. Como amava, pintei as paredes com cores vivas, pendurei fotos na parede, acendi todas as luzes. Mas o homem se trai, me traiu e foi embora, deixando apenas a lembrança da canção, e da festa sobrou a bagunça para eu arrumar, todas essas luzes atrapalhando meus olhos, multas por não ter abaixado o som depois das dez, contas a pagar, copos e pratos e fotos para eu jogar no lixo... sozinha... e ainda hoje vivo amedrontada me equilibrando a 20 metros do chão, de cima dessa corda-bamba, de onde ninguém se dispôs a me tirar... Amor é veneno.

Do desconhecido

Sou o sótão da casa. Escuro, inacessível, entulhado de passado - já reparou que sempre ocupamos o sótão com passado? A forma de vida em mim é rastejante (sou quase inóspita...), e talvez você reclame que, do seu quarto, escute os passos pesados dos monstros que me habitam. E, com certo escárnio, posso explicar: liguei auto-falantes capazes de aumentar o menor ruído em um grito dilacerante. Portanto, enquanto minhas formigas passeiam pelo assoalho, você se contorce de medo, prometendo jamais vir aqui. E é assim que me protejo, criando para você uma imagem terrivelmente distorcida da minha pacata e tediosa existência, te dando medo, muito medo, quando sou apenas... silêncio.
Não posso amar agora. Por enquanto estou repleta de mágoas, de promessas não cumpridas, de um passado colado na sola do sapato. Não consigo sequer conceber a ideia de amar hoje. O amor precisa de espaço, e minh'alma está com os armários abertos e revirados, os móveis foram tirados do lugar e existem cartas e fotos antigas espalhadas pelo chão. Há meses não se abre uma janela ou se tenta varrer o âmbito. E nem hão de tentá-lo: não quero pensar em amor.

Apelo

Não, eu não posso te fazer feliz! Eu sou infeliz demais para fazer alguém feliz! Eu estou te enganando, perceba por favor que estou dissimulando esta alegria, ela é falsa, sinto dores terríveis na alma, estou colada no passado e sofro por ter ficado pra trás, eu sou triste. Sou triste. Sou triste. Você não tem nada a ganhar em mim, sou inóspita. Sou boba, rasa, traíra. Minha própria alma não me aguenta mais. Desista, imploro, eu sou pura propaganda enganosa. Não sonhe comigo, não pense em mim, não pense que o que aconteceu foi sublime, não se machuque, por favor, não se magoe. Eu sou uma mulher cética, arranhada, e deixei crescerem as minhas unhas para poder arranhar também. Eu vou usar as minhas armas e vou ferir você. Por favor, foge agora, sou animalesca, sou destrutiva.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Olha ali! Olha atrás da janela
Está chovendo?
Ventando tanto que as cortinas voaram, te deixando desprotegido?

Percebe, isso tudo que você enxerga agora
São alguns quilômetros de agora.

Aperte os olhos, tente ver além:
Não conseguiu? Lá na frente é muito escuro?
Pois você acaba de contemplar
O teu misterioso futuro, que te reserva milagres intensos
mudanças na rota, uma árvore com maçãs no topo
Pessoas surpreendentes te acompanhando e oferecendo luz...
A lembrança fosca de alguém que te machucou muito
(E nada mais que lembrança fosca!)
Nenhum arrependimento e imensa vontade de viver!

Pois estar vivo é se permitir subordinar
às circunstâncias, aproveitar delas o que lhe engrandece
Moldá-las e por elas ser moldado
para continuar brigando pelo enorme pedaço de felicidade
que lhe pertence!



(Para o Gutinho, que merece muito!)

Cena a dois, para ser encenada em silêncio num.2

(Fim de tarde, beira de um rio. Joaquim e Lorena assistem o ocaso)

LORENA - Olha que lindo, Quim! Hoje eles capricharam no espetáculo! Me parece que as cores no céu querem dançar, estão mais vivas que nós!
JOAQUIM - Nem me fale! Ainda bem que nos permitimos fugir para cá hoje, tiramos a sorte grande de presenciar este pequeno milagre, talvez o pôr-do-sol mais bonito da minha vida!
LORENA - Quim, o que será que define quando acontece algo majestoso como esse sol se decompondo em todos os tons e sobretons do mundo? O que rege as pequenas maravilhas que acontecem no céu? Será a física?  Serão deuses pintores, pincelando as nuvens com poesia? Serão os astros, a posição das estrelas no resto do universo?
JOAQUIM - É mesmo... por que temos hoje este desfilar exuberante para assistir e ontem o sol se pôs em silêncio, como se ele - ele mesmo! - estivesse triste? Isto é intrigante...
LORENA - Certa vez me disseram que esse tipo de movimento natural atípico é resultado de um grande amor que acaba de nascer. Ou seja, ao nascer, o amor promover vida até nas nuvens, inspira até o sol, e então presenciamos um fim de tarde como o de hoje. Portanto, se agora estamos vivendo essa magia, é porque há pouco, em algum lugar próximo daqui, acabou de nascer um novo grande amor. O que você acha, Quim?

domingo, 25 de julho de 2010

Hilda,

Eu sou a garota que finge. Sou a garota que foge porque dói.
Vou lhe parecer feliz, mas estou estraçalhada.
Minha garganta estrangulada pela poluição, pelas incessantes mãos que teimam em abraçar, matando-me aos poucos, mas estarei cantando - talvez até digam que sou afinada,
porém tenho a alma da guitarra quebrada pelo rockstar:
saudosa e para sempre em pedaços.
Eu sou, Hilda, a mulher que espera, que anseia
dissimulando a incompletude ao assumir atemporal
que eu me basto,
quando tudo me falta.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

João Pedro

"(...) E foi naquele e-mail que eu abri meu coração, joguei a minha alma lá dentro: eu finalmente disse tudo pra ela! Quer dizer, eu disse quase tudo... só faltou o essencial."

quarta-feira, 21 de julho de 2010

MANIFESTO COLORIDO I

Cansei-me dos dias chuvosos
- principalmente os que chovem apenas na alma -
cansei-me do peso de empurrar a vida sozinha
como quem de fato carrega o universo no ombro
Cansei de sentir tanta tristeza
por motivos que nem sei direito quais
Estou farta de esquecer o bonito
o leve, o sublime. Estou farta!
Então combinei com as nuvens
E com as árvores, e com as luzes,
e com o violão, e com as ruas,
Que vamos transformar tristeza em carnaval!
Pintar o mundo de novo,
ligar a música muito alto
E vamos desfilar na rua: qualquer alegria!

Convido-te, leitor impaciente
Imploro-te! Traga a tua alegria
Vamos carregá-la juntos! Vamos expô-la,
Venha comigo contagiar o mundo!
Vem, leitor, esquece um pouco
da dor, da parte sombria,
Vem comigo dissuadir a raça humana
dessa tristeza terrível!
Vem ao meu lado,
vamos carnavalizar?

MANIFESTO COLORIDO II

Quem inventou o concreto? Quem inventou os postes de iluminação que nunca acendem? Quem foi que decidiu que as cores bonitas são preto, cinza e marrom? Vamos, entreguem-me os culpados! Quero olhar nos olhos do frio que inventou de tirar a cor do dia. Quero olhar no fundo dos seus olhos, que devem ser tristes como o escuro inabitado do fundo do mar. Eu quero poder dizer: 'senhor, me desculpa a indiscrição, mas é mesmo necessária tanta tristeza?', quero poder, com as mãos e o coração abertos, chacoalhar essa infelicidade cinza e algum coração, quero instituir um Estado novo, no qual as paredes do corpo, da alma,estão sempre pintadas com cores vibrantes, para que a tristeza se sinta acuada, desconfortável, e não queira nunca mais voltar.
Enquanto ecoarem essas notas pelo salão
As notas de uma valsa inacabada
Você poderá ver as estrelas cadentes na palma da minha mão:
Vestir-me-ei da cor do céu
E as estrelas pendurarei nas pontas dos dedos,
como com fantoches.
Maestro! Apague as luzes e retumbe sua canção!
Aos olhos perdidos, sigam os passos do balé!

Alguém, por favor, complete a valsa
(que por enquanto é infinita)
Para que eu saiba o momento exato
de dançar o último passo
alinhado ao último acorde do mundo:
quando as estrelas finalmente se apagarão
para que eu possa dormir em paz...
Existe nos seus olhos um brilho diferente
Um brilho de alma ansiosa
o brilho de quem está prestes a viver um novo amor...

Enquanto meus olhos
tantas vezes tristes
olhando para o lado errado
(o lado do passado)
meus olhos sem expectativa de vida...

Os meus olhos não merecem a sua santa
renovação rebuliçosa...
- Um dia você vai me perdoar?
- Por quê?
- Por ter te machucado tanto... Há muito eu não olhava no fundo dos seus olhos, e hoje, que estamos novamente só nós dois, posso ver. Nos seus olhos há um brilho fosco, típico de quem já chorou muito, esfregou as pupilas para arrancar de uma vez por todas a esperança,
- E mesmo assim falhei.
- , e o sorriso triste de quem tentou continuar a vida e não conseguiu.A tua pele está inteira, mas você transparece todos os machucados que eu fiz na sua alma. Me perdoa?
- Não foi você que me machucou. Fui eu, foram as circunstâncias, foram esses dias cinzas, da cor das suas blusas de lã, esse vento doce que por vezes trás até mim o seu cheiro, o seu hálito respirando tão perto... Eu me machuco porque me permito te amar tanto. E você me perdoa por amar tanto?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Da insônia

Essas horas silenciosas!
Ah, como é difícil lidar com a própria demência!
Não saio da cama: reviro-me por dentro
As sombras dançam balé com as minhas memórias
durante as noites sem estrela nem sonho.
O mancebo repentinamente tomou tua silhueta
e acreditei que você vinha me ninar!
Há uma luz que pisca e um relógio intermitente
Quero desligar o mundo da tomada!
Do outro lado, o seu piano toca suave melodia
E minha alma pagã quer dançar o ritual do seu som
agitando o meu corpo...
Ó, alma minha, me traíste novamente!
Esqueceste que só poderá dançar sobre o piano
enquanto eu estiver a sonhar com isso?
Não me ame. Ou me ame. Por favor, me perdoe por ser tão confusa. Me ame porque quero muito ser amada. Me perdoe, por favor, por ser tão egoísta. Não me ame porque estou armada e vou te machucar. Me perdoe, então, por ser terrível. O que devo querer? Que você me ame ou não?

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Do Novo

Ficou paradinha, no canto escuro, seguro
por horas, dias, vidas a fio.
Ficou sofrendo as perdas que não viveu
ficou perdendo a própria essência para a dor...
Sem esperança de se recuperar da vida.

Mas chegou uma mão doce, macia
que lhe chacoalhou a alma
espremeu, bateu no liquidificador
bateu na varanda e deixou ao sol pra secar.

Agora minh'alma só quer passar o resto da vida
descansando sob seus braços,
aninhada pelo teu calor, amparada por um tal de novo amor.

domingo, 18 de julho de 2010

Não me fale em arrependimento! Se me disser que você se arrependeu eu bato em você até quebrar os seus ossos frágeis, te jogo de cima do mundo, quebro as louças, a bicicleta, rasgo os papéis, destruo o computador, risco todas as palavras, queimo as suas roupas e a minha pele (pois um dia desejei que fossem a mesma coisa), eu grito tudo que tenho guardado debaixo do diafragma, eu cuspo na sua cara e choro na sua frente (...)

Da esperança

Com qual voz poderei me perdoar por estar constantemente me traindo? Desejo tantas coisas que não posso ter, pois já as perdi... e não deveria estar revirando o lixo, abrindo os túmulos do cemitério atrás de vida, pois tudo que encontro é putrefato e me machuca. Eu sei que vou me arranhar até arrancar sangue, e ainda tenho coragem de pedir perdão por esse masoquismo que racionalmente promovo: a esperança é uma loba tola que permiti entrar na minha casa, a loba que jamais desistirá de coçar sarna, mesmo que meu corpo esteja em carne viva.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Eu queria tanto ir embora.
Eu senti um desespero terrível de existir,
uma angústia enorme de ser quem eu sou
(ah! os humanos e suas angústias enormes...)

Mas hoje choveu na varanda de casa
e eu descobri que era só secura:
saí correndo, por instinto
e permiti que a água escorresse...
Foi a água da chuva que lavou minh'alma
Foi a água que arrancou o rancor,
Foi ela que me tirou desse suicídio temporal.

Foi a água da chuva e alguém que me estendeu a mão
oferecendo uma toalha e um 'eu vou com você'.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Classificados: apatia

usada, traída, raivosa, infeliz, angustiada, despertencente, inflamada, monstruosa, terrível, destrutiva, autodestrutiva, mortal, suicída, desalmada, largada, acomodada, triste, falsa, infecciosa, doentia, obsessiva, deixada para trás, má, inválida, usada, magoada, solitária,
tudo isso dentro de mim, pulsando dentro das minhas veias, e implora-se terrivelmente por alguém que tire de dentro de mim tanto sentimento ruim. Não é necessário trazer nada bom, quero apenas não sentir nada. Suplica-se uma alma boa que me traga o vazio.

Autoflagelo suplicante

É porque eu às vezes sou má. Eu desejo te fazer sofrer, te espetar, te deixar perdido, sem saber o que foi que você fez. Às vezes eu queria te ver chorar, se afogar dentro de uma dor sua, só sua. Mas eu sou incompetente: não o atinjo, nunca ajo, apenas desejo. Eu sei que eu sou um monstro, e já não consigo me perdoar. Eu não posso me perdoar porque se eu só me machucasse, me traísse, mas não relasse um dedo no seu espaço, se eu fosse capaz de apenas desejar o bem aos outros, sempre, apesar de me matar aos poucos, eu mereceria compaixão. Mas eu sou má. Eu sou má e quero jogar nos outros a minha dor. E ainda tenho coragem de implorar pelo perdão alheio, apesar de saber que eu não mereço. Eu tenho coragem de advogar uma causa própria suja, roubando por saber que os que me perdoam por existir o fazem apenas porque não sabem o que eu sou.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Faz-me uns favores:
1. rouba minhas palavras
2. apaga do teu rosto as linhas
3. tira da pele este branco de papel
4. esconde de mim a tua poesia latente

Assim não preciso ter medo
de esquecer as regras sociais, os bons modos
e rabiscar os meus poemas
nas linhas delineadas pelo teu corpo
pela tua face,
Não terei medo quando você chegar perto
de não aguentar
e gritar, com as palavras que tenho cultivado,
gritar na tua pele tudo que eu tenho vontade de dizer.

Porque você iria embora
para tomar banho...
e deixar a poesia que lhe descrevi
escorrer junto com a sujeira do dia
E sumir para sempre, atrás do ralo...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Lasciva

Eu bem sei que isso não é amor,
e, apesar do meu romantismo racional implorar para que eu seja toda pelo amor perfeito, que eu me contente em idealizar perpetuamente a chegada retumbante de um príncipe, para quem guardarei o corpo, os meus segredos e mistérios,

as minhas mãos tomaram frente e já abriram todos os botões.
De repente uma faísca e dali nasceu uma nova realidade: você se multiplicou em tantos e um fogo rascante cresceu ao meu redor e uma orchestra caótica retumbou do fundo, tocando uma daquelas músicas tão perturbadoras que não nos permitem pensar e dali não pude mais que assumir esse ballet lascivo e apedrejado onde onde quer que eu fosse havia fogo para me queimar ou você para me magoar e eu, por reflexo, me afastava de ambos, mas por encantamento me encaminhava a ambos e não havia por onde escapar dessa música terrível ou desse fogo queimando ou de você me olhando como quem convida novamente a uma última valsa...

E tudo isso dentro da minha cabeça.

domingo, 4 de julho de 2010

Não se engane!

Sou dona de uma alma apaixonada
com brilho nos olhos,
que aguardaria a vida por um grande amor...
Mas meu corpo não espera:
ele urgentemente deseja.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

auto-herege

Não me pergunte minha opinião!
Fiz promessa para santo que nem existe
Esqueci seu nome e não paguei!
Os deuses até agora me têm como
"PROCURADA, DEVEDORA!"
Mas eu sei que estou protegida
porque de lá para cá mudei tanto
de rosto
e de opinião
que nem eu me reconheço
se olhar a foto exposta
no Colosso dos meus deuses!

Aliás, nem eles mesmos sabem
se ainda existem
ou se eu já mudei de ideia
e parei de acreditar!

Do Mar, da Grande Nau sem rumo

Viver é, para sempre, a Grande Navegação.
Nasci dentro da nau, sem ser comandante.
E desde então tenho lavado o convés
e remado contra o vento...

Mas toda noite me deito no chão do barco
e sonho, olhando para as estrelas,
com o dia em que chegarei nas suas terras exóticas
para conhecer teu povo, tua família...
Eu sonho com os horizontes do dia seguinte
apenas para esquecer
Do corriqueiro risco de um naufrágio
das tormentas, tempestades que,
em alto-Mar, são tão terríveis...

Para esquecer dos monstros
que por tantas vezes perturbam minha paz
como quem lembra aos que festejam:
não tirem de vista que a vida é triste!

O Mar é pouco para os meus sonhos,
mas eu sou tão pouco para o Mar...
E eu vou aos poucos coletando as minhas lágrimas
para, com elas, aguar a semente
de uma vida que ainda espero renascer.
O confessionário do poeta é o caderno
O confessionário do músico é o piano
do pintor, o quadro branco
da minha mãe, o escuro do banheiro
da criança, o travesseiro

Vê que não existe vida se não pudermos
em silêncio, contar todas as tragédias
da nossa própria e pequena existência?

(Constatei também que, quando se fala em confissão,
os padres já saíram de moda!)

Pessimismo

Não acredito em maciez
Mãos não existem para acariciar

mãos são
muito osso
e pouca
carne.

Do poeta

O poeta é a alma ambígua
que tirou das costas a balança do mundo
para reclamar seu próprio peso
ante a realidade.

Pequeno e doce segredo

Para mim, comer mexerica é um ritual sacro:
preciso me concentrar, fazê-lo sozinha.
Começa pelo cheiro
falamos tanto do cheiro, mas nunca paramos para apreciá-lo:
é mágico!
Os poros de uma mexerica concentram um líquido vital
- é vital para mim!
E descascá-la tem de ser feitos aos poucos: é uma fruta púdica.
Em cada gomo, as fibras tentam esconder o segredo
Tenho de retirá-las, fiapo a fiapo,
abrir a pele, retirar o caroço, e então, atingir a alma
Você já viu o interior do gomo?
É a medula exposta de um corpo que se abre, aos poucos
A mexerica é a única fruta completamente feliz:
cores, cheiro, sabor, tudo conspira para completa alegria.
Há, na doçura laranja da mexerica, todas as respostas da metafísica.

Do piano

No canto da sala, veja:
há um piano, acredito que você esteja ouvindo
as teclas implorando por uma mão
que ofereça carinho, um afago e uma nova canção
às vezes até as teclas brancas queriam ser sustenido
Por mais torto que seja o som, é tão bom ser diferente do que se é!

O piano precisa do pianista
para sair de seu lugar-comum de silêncio, 
a beleza amadeirada e estática.
O pianista precisa do piano
para sair de seu lugar de ser humano triste
incompleto
Não há pianista que não seja um pouco incompleto, 
porque a música do piano precisa preencher vazios.

Não se incomode com meus olhos cheios de lágrimas
Corra ao piano, solte o grito que tem abafado
Eu saberei que a música sai da sua garganta,
mas vou fingir estar emocionada com a dança dos dedos entres as teclas

ou, apenas, por estar presenciando o espetáculo de um grande encontro.