segunda-feira, 31 de outubro de 2011

És de mim um membro abortado

És de mim um membro abortado:
e eu cavoco suas feridas como um bicho faminto
que no corpo outro procura sua subsistência,
Ao mesmo tempo em que bombeio o sangue teu
como se minhas mãos fossem um segundo coração
que te pudessem manter vivo.

És de mim um membro abortado
e no silêncio que se faz a cada dia
te procuro vivo dentro do meu pulso em chamas
e do meu corpo móvel estancado no mesmo lugar
como sempre, como eu escolhi
Como nos foi predestinado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A realidade é a carne crua exposta em cima da mesa:
mesmo depois de morta 
continua
sangrando.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Eu ficava assim triste pensando 'não guarda mágoa de mim não!' eu ficava assim meio muxoxa refletindo sobre cada um dos passos do lado de cima da corda bamba, sobre todos os erros-quase-mortais nos saltos-quase-mortais que eu tive de dar para driblar a própria morte e aí eu lembrava que teve um dia pior do que todos os outros em que eu estava pior do que em todos os outros e que nesse dia eu te falei coisas duras e pisei nas suas unhas encravadas nos dedões dos pés e se te pareci insensível às lágrimas de dor ou de raiva foi porque eu precisei sabe? Não guarda mágoa de mim não porque eu sou um bichinho arisco de vez em quando, desses que se escondem debaixo do sofá e quando muito muito muito acuados abrem as patas e lá existem unhas que podem arranhar um pouco mas é que eu sou bem humana mesmo que às vezes lhe pareçam incríveis os saltos-quase-mortais a cabeça na boca da leoa ou a grama de alfinetes eu também não sou infalível e pensei mesmo que por um instante insano eu pensei que você precisava ouvir ou que eu precisava falar pra você ficar bem. Não guarda rancor não coração você é a minha corda bamba entende você é a leoa que eu tenho de juntar coragem para me entregar, me encontrar, enfim...

domingo, 9 de outubro de 2011

(...)

O pano rasga de exausto por carregar o corpo ou as moedas. O pano esfregado rasga suas fibras ao meio, aos mols, e destitui seu próprio poder, sua própria função. Meus bolsos se rasgando de pouco, dia após dia, sofrendo erosões cotidianas, intemperismo, tentando desgraçadamente suportar os meus acessos de raiva e ingratidão, em que cerro os punhos puxando-o em todas as direções. O papel rasga suas células jovens. Rasgo as palavras que te escrevi n'algum lugar do passado: palavras como 'amor' e 'saudade' sangram quando rasgadas, assim como os pulsos ébrios dos amantes desmedidos. Minha lâmina e minha veia em total comunhão de bens - todas tornando-se una -, a pele aberta como um envelope e os líquidos em jorro, as moedas no bolso fatigado; construídos por tecido vagabundo (meu corpo e meu bolso) sangrando e chorando a perda do outro, te escrevo no corpo com esse sangue fresco que é a morte ativa daquilo que podia ser eterno atravessar os séculos post mortem etc. Meu coração é o fino feixe de força que me força a fingir a ausência da fúria, a fuga discreta pela porta lateral, os olhos fixos no além, o corpo físico no aquém, um último suspiro... rasga, meu coração.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sobre a saudade

Saí para andar pelas ruas do meu bairro... para ver se encontrava nas esquinas e quarteirões, que são a minha história, um motivo paras minhas perdições. Então caminhei por todas as ruas que banhadas de sol ou de lua ou da chuva de outrora enfeitam a memória destituída de ciência ou coerência. Nos meus passos, que alternam entre o desequilíbrio controlado e o equilíbrio precário, percorri caminhos que há muito não se delineavam sob meus pés. E então concluí: aqui jaz o meu passado. Enterrado por um dos muitos prédios que eu assisti serem construídos da minha varanda - e hoje já se tornaram decrépitos, tijolos mal-empilhados sobre uma terra mal aplainada com a pintura gasta e a arquitetura obsoleta. As casas para alugar juntando pó e saudade, que foram construídas numa época outra, apesar de há tão pouco tempo, se erigiam acima da minha miséria, do meu desespero: cadê o campinho em que eu soltava o cachorro e depois tinha que sair correndo atrás para não perdê-lo para sempre? A guia mal feita, com coqueiros que impediam a passagem, agora é um calçadão feito por designers - mas também já se tornou demodê. Fugi para os refúgios de antes: Ana Carolina? Não mora mais aqui. A Helena do 24 se mudou faz tempo. André? Que André? Estou sozinha entre escombros de mim mesma. Porque então eu compreendi: eu sou esse bairro que já é uma fruta mordida oxidando em cima da mesa. Eu sou esses prédios desinteressantes aos olhos das novas gerações de compradores moradores etc. Eu sou a calçada nova que já é velha - e até o cachorro se perdeu para sempre...