quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Da pacífica loucura

Nossa loucura já foi tratada. Já fomos educados, castrados, domesticados: quantas porções de vegetais, nenhumas porções de gordura, uma cápsula de óleo de alho para o coração, não gritar de felicidade ou infelicidade extrema. Aliás, não sentir felicidade ou infelicidade extrema. Não catar fruta no é e não comer alface sem antes esterilizá-la. Não amar na frente dos outros. Nossa loucura foi consumida, extinta, e nós engolimos toda essa sanidade como quem engole um tapa na cara - e acreditamos que a escolha foi nossa.
(E como não dizer que essa também é uma loucura?)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Querido,

estou te ligando para te contar que o amor morre sim, viu, que sem cuidado a grama cresce até além do joelho e não se pode mais caminhar. Eu queria, queria que você soubesse que aos poucos a lembrança tua se torna erva daninha e eu sou forçada a te arrancar, assim pela raiz, sem muita dó - pois que mesmo sendo uma coisa ainda um pouco viva, atrapalha a beleza do meu jardim. Nem um interesse no meio da tarde, o amor vai definhando, assim, numa cama de UTI, sozinho no horário de visita: pra quê lutar pela sobrevivência se não lhe é relevante? Era só isso que eu queria, te lembrar de novo e de novo, para não ser uma surpresa quando o meu amor por você estiver sepultado - mas aqui não cresciam flores?

sábado, 10 de setembro de 2011

Amor morre na pausa da música.

Na quinta-feira última, o amor finalmente sucumbiu, após meses de intenso tratamento e tentativas repetidas de renovação. Parece que tentaram postergar a perda apertando o pedal direito do piano, mas logo o fôlego acabou e o grito tornou-se suspiro e daí: silêncio. Contrataram o melhor afinador da Escócia, da França e do diabo, mas os especialistas afirmam que o amor não estava desafinado nem desajustado, estava morto mesmo. Os médicos legistas isolaram a área após algumas horas e o corpo amorfo ainda está em estudo. A causa mortis está sendo deliberada: alguns afirmam que o amor foi abatido por uma doença letal, apenas. Outros radicalizam, gritando com cartazes nas ruas que foi homicídio e reivindicando a prisão do culpado. Existe também a ala dos que creem na morte natural: "Velhice, desgaste, são processos que assombram todos os relacionamentos, é cientificamente comprovado. Nos resta questionar apenas o motivo de este ter durado tão pouco tempo", afirma um dos médicos responsáveis pela autópsia, que preferiu não se identificar. O amor vinha se queixando de falhas em seu funcionamento há alguns meses, segundo fontes, mas havia passado por uma alta animadora - que se mostrou momentânea. O corpo inerte foi encontrado na noite da quinta-feira, aparentemente vitimado por falência múltipla. Não havia ninguém no recinto, mas os vizinhos afirmam ter ouvido músicas no piano horas antes. O corpo aguardará no IML (Instituto Médico Legal) por 15 dias até que alguém faça o reconhecimento do corpo e, em caso negativo, será enterrado em vala comum.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

- Foi assim: acabou. Acabou porque... acabou porque nós não cabíamos em nós. Não! Foi porque eu não cabia dentro dela - acho que nunca coube. Sabe quando você encontra alguém que se sobra por todos os lados, e por isso mais nada lhe cabe? Ela é assim: vazando seu jeito, vazando suas graças e sua alegria: e só. Meu corpo não conseguia entrar no dela, porque sobrava corpo dentro do seu próprio corpo. Meus sonhos jamais poderiam ser os sonhos dela, porque de sonho ela já se quitava. E então... então ela descobriu que eu não cabia nela, e não pôde nos suportar. E ao mesmo tempo eu descobri que eu jamais poderia fazer parte dela, e não pude nos suportar. Não nos vale discutir o amor que ela sente ou que eu sinto - porque nós sentimos! Sentíamos, sei lá... Não! Não morreu. Nem eu por ela nem ela por mim. Nos amamos. Mas não podemos, eu não posso. Sei lá.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Fluxo de Consciência: Desespero

Me apoia na ponta dos pés me segura na prontidão do abismo e me prepara para alçar o último vôo em direção ao desconhecido e aumenta o volume da música até que seja tão alto que eu me esqueça dos meus próprios pensamentos e possa descansar de mim mesma já que há muito venho me torturando sem ter para onde fugir, cuida de mim e me leva para longe de todo o mal amém me guarda das dores que me açoitam assim assim no plexo solar assim assim que antes de machucar qualquer outro é a mim que dilacero, esquartejo é a mim que destruo antes de olhar ao redor e encontrar você que existe e não precisa de mim para ser mas eu preciso de você antes de todo o resto assim assim porque você tem a paz que eu preciso para mim para sobreviver a mim mesma antes de tudo o que vem depois de mim segura quem não pode mais se segurar