quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Querido,

escrevo apenas porque sei que você nunca vai ler esta outra carta, sempre endereçada mas nunca entregue. Com o passar do tempo tenho pensado menos em você, como pessoa, e mais em tudo o que foi - e é - como acontecimento. E nos tratando como acontecimento, consigo honrar com mais respeito os nossos tratos que nunca foram feitos, mas que tácitos calaram bocas que se desejavam e aquela sede de toque que não se saciava, apesar de. E desse gesto, que um dia julguei interrompido mas que hoje compreendo, desse gesto nasceu um bicho calmo, com o gosto do fundo do mar, um bicho lúcido, que acha a paz na ternura de um encontro que nunca se deu. Cantando baixo as canções que um dia teriam sido nossas, embalo este amor prematuro... até ele cair no sono novamente.
Chega de símbolos.

Eu quero o gesto violento e cru.
E do gesto fiat lux.
Ela está com a alma roída até o osso. Eu te pergunto: até onde você tem a coragem de ir? Até onde você pode ver suas escaras e feridas, que ainda não cicatrizaram, sem desmaiar de nojo ou remorso? Te previno: esta moça está arredia feito bicho ameaçado e quando você chegar, faceiro, querendo festa, ela vai te arreganhar os dentes e tentar morder (torça para a lua ainda não ter virado). Você encara? Você deixa a habitual covardia de lado? Depois de morder e depois de cuspir impropérios e de mostrar: você me roeu aqui, aqui e aqui, olha!, e isto aqui é o sangue e isto aqui é o pus inflamado da minh'alma e que me sobrei braseiro somente, dos gestos interrompidos e de tudo o que podia ter sido mas não foi. Depois de querer também te corroer com o mesmo ácido que você derramou sobre a pele quente dela e de esgotar esta raiva ancestral, se você tiver a coragem de ficar: a loba vai se desaguar em corsa e aí vai ser mais doído de ver, porque enquanto a loba guincha, grita e arranha num espetáculo de crueldades, a corsa desaguada é a dor pura e silenciada da noite, escondida entre camas e cobertas, entre palavras doces e lágrimas que ninguém nunca viu nem verá - e ela, corsa acuada, balbuciará de seus esconderijos: é tarde demais?
Um lugar n'onde repousar esta alma em chamas.
Uma cama para pôr os medos para dormir, e uma canção de ninar que seja eficiente.
Um refúgio furtivo que receba meu sangue e lave, álcool na carne, minhas feridas abertas.
Um quarto, um canto do quarto, um pedaço do canto: que receba estas lágrimas remoídas sem perguntar de onde vêm ou para quê ou conclusões quaisquer.
Um silêncio desses profundos, de abrir o corpo: um silêncio que permita a lucidez da mente, d'alma, do gesto.

E, assim, encontrar nesse meu último gesto o amparo que estanque o sangue, a palavra de consolo, a estrada aberta para além-mar.
Não dormir: apenas sonhar... projetar nas paredes deste quarto branco tudo quanto poderia ter sido, ou que foi, o que virá ainda; dar corpo a tudo que não é carne, mas que na carne se realiza. não dormir para sonhar, lúcida, com a consumação de um amor prometido, ou com o mundo na rua exigindo, ou a última flor a se abrir antes do apocalipse. Neste idílio o gesto inacabado se complementa. A palavra desnecessária cala. O cão apenas assiste, sem intervir: e assim sobra só o osso. Só a alma.
Só o osso da alma e nada mais.
Escrevo a lápis estas confissões - ou segredos, talvez - na incansável esperança de que as palavras se encontrem no mais íntimo do caderno e que, generosas, se troquem por outras melhores, mais belas e expressando com mais exatidão as ideias, as charadas, os sintomas. Não para descrever: para indicar alguma direção; apenas um chute de que é para lá que devemos seguir, e quando não for, que se abra o caminho para as outras tantas estradas. Eis a vida: um caderno escrito a lápis, um breve devaneio, um caminho escolhido como um salto no vazio. Que haja menos medo, pois, no adulto a decidir o itinerário, já que chegado o fim do dia ainda é possível alterar a rota, as palavras e a pergunta a ser respondida...