quinta-feira, 28 de março de 2013

(...) e eu, este bicho arredio, com as patas sujas chafurdei os nossos segredos antigos numa lama impura, num eterno chorume de ressentimento e mágoa. Você se debatia procurando a superfície e eu fui o leão cruel que pateia e dissolve e impede e segura. Meu passarinho tolo, queria cantar o nascer do dia e eu morria de medo da tua luz e por isso apertava o teu bico inocente até você perder o ar e desistir, eu fico em silêncio então meu senhor, nunca mais os dedos contra o piano, nunca mais meu senhor. E eu fugia por dentro do lamaçal, denso de uma vida suja anaeróbia. Se o teu próprio ar é a vida em si, se todo ar que o teu corpo toca é precioso, com que coragem eu poderia poluir o mundo teu com as minhas larvas de cólera,  acuado entre remédios e traições? Com que coragem eu poderia impedir o teu sol com o meu frio noturno? Eu sou o frio de uma noite que não quer terminar. (...)

segunda-feira, 11 de março de 2013

Eu quero me deitar no ovo desta noite em que você me leva pela mão e eu sou teu bicho: logo eu, que não sou nunca bicho e que fecho sempre as mãos àqueles que me tentam segurar. Logo você sendo um lobo que a qualquer momento pode resolver me sacrificar. Mas não sou tão indefesa assim e afio as unhas no mármore da tua cozinha; é por isso que não tenho medo de me deitar nos teus braços e assistir a lua me despir e uma chuva louca molhar o meu corpo: porque sei que quando eu me levantar, nua, encharcada e selvagem, você sentirá um profundo respeito pelas minhas cicatrizes.