quarta-feira, 30 de novembro de 2011

No dia em que cheguei na beirada do mundo, quis ver o que acontecia se. Então, com todas as forças, joguei a última moeda do meu bolso para cima e para frente. E o espetáculo se fez: primeiro, como um gentil sussurro que se vai transformando em grito. O primeiro a desmoronar foi este supérfluo século em que os aparelhos digitais não suportam quedas ou quaisquer maus tratos. Por cima da TV de plasma desabou a cidade e o capital, os carros, as sopas em lata. E o século anterior por cima, as máquinas a luz elétrica o telefone e depois as carroças as igrejas os muros os moinhos os burros de cara e mais rápido tão rápido que eu já nem podia discernir a cruz caiu o homem que virou macaco caiu o próprio fogo na direção de um sem fim, a bomba explodiu novamente e ninguém se importou porque tudo já era sombra ouvi o leve tilintar metálico sobre os escombros e então fiat silentium. Era o fim de todas as coisas. Os homens ao meu redor, um pouco maravilhados um pouco estarrecidos, logo retomaram o prumo e diziam: vejam como o passado é frágil! Lhe bastou um empurrãozinho... apoiemo-nos no futuro, então!
E iam caminhando sobre aqui que um dia havia sido nosso, respirando precariamente o gás carbônico inútil que era o que sobrou, a fuligem nos olhos, o sorriso empapelado.

Silêncios seguidos de palavras constrangidas

Crave tuas unhas na minha pele, eu não vou gritar de dor. Enterre nas minhas entranhas os teus pecados, eu vou lavá-los com as mãos em brasa, junto com as cortinas e o meu corpo cru. A carne perde-se eu não caibo no espaço que me foi designado; eu não caibo dentro de você e nem você dentro de mim e é por isso que eu aprendi a urrar como um bicho que sente dor e espanta os que se aproximam. Mas de você não. Para você o meu corpo pode ser a tábua onde enterras os pregos da tua raiva. Para você eu abro mão de mim.
Querido,
hoje eu quis que você estivesse aqui. O espírito filosófico está ao meu redor e eu não posso captá-lo por inteiro. Eu queria que você estivesse aqui para escutar também e depois conversar comigo. Eu gosto quando você conversa comigo. Queria que você pudesse estar comigo nos dias muito insossos, para me provocar com as suas frases prontas e seus desejos bobos, e assim eu lhe faria cócegas e nós seguiríamos procurando explicação para tudo o que nos falta. Eu te olharia nos olhos, capturando com a ponta dos dedos os seus traços imprecisos, enquanto você falaria, falaria muito, desconsiderando o meu comportamento inadequado. Vê como amar pode ser simples? Vê como viver pode ser tranquilo? Mas você não está comigo agora e o tempo passa lentamente.
(...)
A morte me assusta. Ela é como uma sombra, uma coisa amorfa a qual optamos por ignorar até que ela se levanta e cobre nossas vidas com ausência. A morte é como o vento farfalhando as folhas no quinta - e de repente torna-se tempestade, escancara as janelas e arreganha os dentre numa trovoada. A morte me ronda e puxa os meus pés durante a noite. A morte do outro me aterroriza mais do que a minha própria - me faz questionar o silêncio, as opções que fiz, os meus "e se's". A morte do próximo me faz temer estar sendo insuficiente, porque eu sou insuficiente.

mais um fragmento

(...) um bicho enovelado em suas próprias mini-novelas, enviesado numa vida sem saída, ensimesmado em cima de uma cama sem lençóis nem esperança, um bicho manco, esperando a própria vida se resolver e como não se resolvesse, apenas afundava um pouco mais nas cobertas e por lá ficava, silente. (...)

Amor,

jamais poderei ser tua. O tempo tem me mostrado a verdade: aquela verdade cruel que se nos apresenta nos fins de tarde. E ei-la: jamais poderei ser inteira tua. Isto porque devo ser minha antes. Para fazer a minha arte, devo ser minha em primeiro lugar, átomo por átomo, célula por célula. Depois de me ganhar toda devo receber o mundo todo, sem medo do mal e dos dias tristes. E então, meu amor, e só então poderei ser tua. Mas já terei perdido tanto disso que sou hoje, e você terá perdido tanto que é... que talvez nunca mais nos encontremos...

Iemanjá,

quero beber das águas do teu universo, nascer como a flor branca que chora leite e vida, tecendo com suas pétalas o próprio dia e o próprio sol. Quero aconchegar minha cabeça no negro peito teu, que arfa conforme as ondas batem na grande pedra que Deus vive a esculpir, e neste ritmo pulsante e vital quero poder rodar com as minhas saias, de modo a permitir que pela minha perna escorra todo esse mal, toda essa sujeira que nos impede de continuar com coragem. Quero que o teu sal me lave o corpo e me permita, mais uma vez. Quero que a boca tua beije meus olhos, me abençoe e me permita o último mergulho... a cada dia.

sábado, 26 de novembro de 2011

Pelas cerejeiras em flor
E pelo tempo que temos medo de tocar
Pela delicadeza da vida
Pela sordidez da vida
Nós continuamos procurando um lugar
para retornar
um alguém
onde abandonar o corpo?
Pelos ciprestes altivos
pelas abelhas em guerra
nós também desejamos o equilíbrio
nós também...

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Estrelas elétricas

As noites na Grande Cidade são belas como a saia com que rodopias quando toco os atabaques para você dançar. Nas pernas tuas acendem as luzes dos grandes edifícios da cidade que eu amo e para a qual corro sempre que sinto saudade, quando posso, quando nós nos permitimos retornar. Enquanto batuco o surdo e a caixa, vejo teu movimento leve entrecortando as lâmpadas dos predinhos onde moram as velhotas que se despedem de tudo isso e as crianças com as vistas ofuscadas pelas tantas novidades: e acredito que o teu corpo faz parte de mim do mesmo jeito que a cidade me pertence e eu a ela pertenço. Quando você volta sambando na minha direção eu tenho certeza de que não há nada mais perfeito que as estrelas elétricas dos postes nas ruas, que na verdade são as longas pernas tuas abraçadas pela saia negra e dourada da Noite da Grande Paz. E então me agarro a esse momento, implorando aos Deuses para que eu possa ficar aqui para sempre... até que o batuque acaba e eu tenho de ir embora.
LÉO - As amoras vieram... e se foram. As pitangas vieram... e se foram. Mas eu continuo aqui, como sempre caminhando todos os dias sob as mesmas árvores que já estão ansiosas por novas primaveras. Igual aos outros anos, eu. Igual às outras estações. O sabor doce das amoras já sumiu, e o azedo das pitangas continua azedando o pouco que eu podia encontrar de delicioso nos dias. Eu caminho sob as árvores procurando uma última fruta, uma última cor no meio de tanta, tanta monotonia. E nada ou quase nada me aparece: uma caída no chão, esperando a terra a absorver novamente; outra pendendo no galho, mascada por ave ou outro animal mais rápido que eu. E eu, igual a sempre, sem qualquer vida nascendo novamente, aquele velho outono corriqueiro, igual a todos os outros dias, vazio por dentro, por fora, ao redor. Vazio de novo, como eu já esperava que seria.

sábado, 19 de novembro de 2011

Tempos difíceis virão. Cabe a ti chafurdar no perdão e confiar - de uma vez por todas. Estica os teus pés sobre o meu colo e entrega o peso do teu corpo e dessa alma cheia de marcas queimaduras rancores, acreditando que os meus músculos bem treinados serão capazes de te impedir a queda - e eles serão. Me entrega... e se descobrirá leve como bicho, manso, agora tudo bem. O mundo é pesado demais para você carregar sobre a cabeça, pelo menos desce para as costas! Os tempos difíceis se aproximam, e a lágrima é apenas água com sal - por quê sentir vergonha das suas? Cada um carrega a própria dor, o próprio parto. Permita-se: precisará disso para sobreviver no futuro. Escuta: eu estou aqui conversando com você.

Querido,

quando penso em amor, devo admitir que só você me vem à cabeça. Amor, amor, amor. Acho que te amo. Já senti tanta coisa por você. Quando fui apaixonada, o que eu sentia não era amor. Quando fui rejeitada, o que eu senti não foi o amor. O amor foi o que eu fiz dessa paixão e da rejeição que sobraram. Aos poucos a raiva e o desejo, em fogo baixo, se misturavam, cosidas de modo impenetrável como a roupa que eu jamais desgrudei do corpo. O asco e a atração tornando-se uma coisa única - mais que racional, mas espiritualmente... O meu amor pulsa como meu sangue e como meu pus... e não posso me explicar, como não pude escolher quando foi a hora. Mas hoje o teu nome é o meu significado para o amor, porque transcende o desejo, transcende a desistência, transcende, apenas. Eu tenho medo, enfim, que ele morra - porque creio que isto que sinto é belo e é grande e é único. Me apavoro por me afundar distante de todo o resto que sou, se morrermos. Ficarei para trás por estar na frente do mundo - e ele jamais me alcançará. Cuida de mim. Cuida, estou com medo. Estou com medo do que eu sinto por ti.
Tudo apodrece. O corpo. E
a alma também.
Pois que a eternidade
se apodrece aos poucos
Deus apodrece aos poucos
o Dia apodrece - todo dia.

Fragmento

E então: o vácuo. Mais uma vez abandonado no escuro. Como se houvesse desaprendido a ler a vida em braile, vaguei pelas ruas desacorsoado. Horas, horas, horas em que revivi toda a nossa histórida desde o dia frio em que nos conhecemos até as últimas tardes de novembro, revivi os últimos 15 anos, mais uma vez jogados no vazio. E a explosão que fora nosso encontro na rua.
estou te escrevendo apenas porque jamais lhe endereçarei esta carta. Nos últimos dias tenho sentido um alívio. Porque nós estivemos juntos e eu nos perdoei: a mim, por todo o orgulho e por ter permitido por tanto e tanto e tanto tempo ficar com essa sofreguidão, essa mão segurando sem piedade meu pulmão, a claustrofobia de mim mesma; e a você, por tudo o que ficou faltando para me fazer feliz, por todas as coisas pelas quais eu aguardei e me frustrei inutilmente... Então este alívio. Porque agora finalmente posso me livrar de você: desentravar o teu nó é te afastar do meio da minha estrada como a pedra de Drummond e finalmente seguir mesmo sem você. Paradoxal, não? Permitir o meu amor por ti é, ao mesmo tempo, permitir que esse amor morra, se isso for o natural. Antes não: tamanha era a raiva que eu sentia com o amor embolorado que tinha sobrado nas paredes da minha garganta. E eu não podia gritar...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Querido,

estou te escrevendo porque, como explicar?, porque percebi que estou me descobrindo - mais uma vez!... -  e estou descobrindo coisas em mim que você talvez nunca compreenda, já que você se segura até o fim nos teus jeitos, nos teus conselhos e no teu ponto de vista: e eu entendi! Agora sei que eu não. Depois de experimentar tantas coisas tantos dias com outras cores tantas roupas sujas tantas noites tristes tantos outros tantas coisas, me percebi uma mulher que não prefere nem pouco em muito tempo nem muito em pouco tempo, uma mulher que não é doce nem salgada - mas de vez em quando mais azeda do que você imagina!... Eu estou aprendendo a conviver comigo, como sempre. E ultimamente faço coisas que você não conhece. Pinto a boca de vermelho e saio à noite, danço e beijo homens sem saber seus nomes. Me apaixono por uma noite e quebro os saltos altos! E pulo na piscina de roupa ou tiro a roupa pra pular na piscina. Estou livre para me permitir ser leviana de vez em quando - o que eu nunca poderia ter sido antes - e é bom. Não se preocupe! Me respeito. Mais do que nunca, não quero me fazer mal. Não se preocupe. Não estou me tornando rodriguiana nem niilista. Nem fútil ou supérflua. Eu não caibo nessas palavras; apenas isso, sou leviana n'alguns dias. E no dia seguinte passo os dedos sobre a maquiagem borrada nos meus olhos, escovo os dentes e volto às aulas. Aos ternos.

sábado, 12 de novembro de 2011

Melissa fala para o cachorro aquilo que sempre ouviu da sua mãe

ABRE ASPAS

Vem aqui que eu vou acabar com a sua vida. Vem aqui agora! Quem foi que mandou você fazer isso? Quem foi? Sua chata. Você é muito chata, tão chata que ninguém te aguenta. Sua criança idiota, por que é que você faz isso com a sua mãe? Hein? Eu não te suporto mais, sua idiota. Sai da minha frente agora! Insuportável! Ah, você vem me morder? Eu acabo com a sua vida! Insuportável!
(...)

FECHA ASPAS

Retirado da velocidade do som entre a fina barreira que delimita a minha casa da casa dos meus vizinhos. Melissa tem oito anos. Sua mãe Aline já gritou essas palavras para ela muitas e muitas vezes nos últimos oito anos. Alguém teria de ouvir a raiva que Melissa aprendeu...