segunda-feira, 12 de maio de 2014

Parte I

Ando procurando um canto n'onde me esconder. Ando com essa vontade d'um refúgio... ando com essa suspeita de partida... ando com esse insossego de estrada. "Se alguém numa curva me convidar eu vou lá", sacomé? Pois é, meu bem. Meu bem, me desculpe, às vezes sou mais bicho que gente. Às vezes sou mais bicho que gente. Amorzinho, te mostrei os dentes - que rudeza - mas foi porque essa desconfiança que tenho de homem. Homem tem esse hábito de de repente machucar a gente. Mulher também, e até eu também, mas muito homem já me arranhou aqui e aqui e aqui. Por isso arreganho's dentes e rosno. Uma desconfiança, alguma mágoa já ancestral sabe benzinho? Por isso ando mais pra estrada que pra homem, se for pensar em como me salvar da solidão. Bem mais estrada que pra homem. Mais pra estrada que pra você, meu bem. Meu bem - que piada: meu bem?! - você não me sacou, eu sou mais loba do que pareço. Sou corsa, sim, acuada, sim, mas sou loba também. Você não entendeu nada - nem eu, quando deu a hora e você nem tchum. Nós não entendemos nada, não chega a ser engraçado?

Parte II

Não, não foi engraçado, querido. Ainda não é engraçado, eu que sou assim, fazendo graça pra você não perceber o quanto eu sangro. Não foi engraçado porque foi assim: despencar abrupto de penhasco inesperado. Quando eu comecei a me sentir em alguma segurança



não é bem assim querida estou confuso querida não queria te deixar no meio do fogo cruzado das minhas guerras querida querida infelizmente não tem lugar pra você aqui. Cortou, doeu. Não morri não, olha eu aqui vivinha da silva! Mas doeu sim, não vou te enganar. Bem você, que eu tinha escolhido pra fazer diferente, bem você em quem queria alimentar essa sede de estrada, que era pra me acompanhar. Vê? Por isso a necessidade de arreganhar os dentes e de me fazer de desentendida quando homem chega perto. Calejei, amor. Tem que ser muito homem pra me tirar daqui. Dirão: não bote tudo que é homem no mesmo saco. Boto. Boto sim. Já doeu o suficiente aqui e aqui e aqui. E aqui. Não tem essa bobagem de entrega não. Não tem essa coisa de "Mas ele é tão gente boa" não. Eu fico é com a minha estrada.

Parte III

Mas mesmo assim eu tenho às vezes vontade de te ligar pra contar do meu dia. Que esquisito, né? Em meio a tanta mágoa, a tanta proteção, em tanto muro de alta tensão, você plantou um pé de Lua dentro de mim. E isso porque nunca nem deu tempo d'eu te ligar pra contar nada. Ficou essa sede de tanto a ser vivido. Cortou, sangrou, doeu. Mas sobrou ternura. Isso é o que mais me irrita: essa ternura que não me larga.

domingo, 11 de maio de 2014

Ainda sobra muito sangue pra sangrar em quintas feiras como essa em que a sua presença é uma bala cravada bem no plexo solar em que o seu silêncio é uma faca fina desfiando a minha pele de cima a baixo no corte mais transversal eu posso me afogar no choro eu posso espernear gritar mas nada alivia essa angústia da tua presença e do teu silêncio nenhuma palavra arranca a bala do fundo do peito nenhuma canção de ninar aplaca essa palavra que ecoa dentro da minha alma: fracasso. Talvez você pense nisso tudo e talvez a minha presença te seja um incômodo mas você não morre eu morro morro porque isso fracasso rejeição sou insuficiente sou pouco eu sou muito pouco não te serve não sou impossível o suficiente não sou mistério suficiente não sou nada o bastante para ser escolhida ou sou tão pouco que posso servir de brinquedo para o teu silêncio e esse teu olhar cruel que me procura no meio da multidão e esse sorriso cruel que diz você é pouco para mim como uma bala rachando o osso da angústia atravessando a carne que não parou de sangrar até agora o sangue escorre e pinga no chão eu limpo e sorrio pra você e tento ser linda e tento descobrir o que um dia te fez vir até mim e quero que isso brilhe pra você se arrepender mas é um brilho morto e você sabe e me olha com dó através da multidão eu sei eu sei das minhas escaras visíveis eu sei das cicatrizes ainda vermelhas eu sei dos olhos inchados eu sei desse gosto de desesperança eu sei que você vê isso e sei que para você tanto faz
mas você veio a despeito de toda honra de uma honestidade sacra a despeito do que é razoável você veio e me remexeu como uma criança cutuca o formigueiro para vê-lo por dentro desse mesmo jeito minhas entranhas abertas você com uma vara cutuca as entranhas se contorcem você feito criança ri de prazer você cutuca mais bagunça mais ri mais me olha com dó e vai embora a chaga aberta sangrando você vai embora com os seus amigos e dali a uns dias me manda uma mensagem qualquer um sorriso qualquer um olhar qualquer através da multidão eu me contorço eu me remôo eu me destilo em sangue em pus em lágrima e você nem fica sabendo com todas as palavras e nunca pensa em mim quando deita sua cabeça e pega no sono

sexta-feira, 2 de maio de 2014

eu continuo aqui limpando com a pele os suores do mundo mas desvairada sem dormir sem comer sem rezar me sobra apenas dançar às músicas que tocam ou que não tocam mas para elas sim eu continuo no mundo sacudindo os tapetes do tempo mas sem memória e sem futuro a poeira me dá alergias e desejos eu preciso olhar o mundo de um outro jeito quem sabe através das frestas ou no escancarar das portas tudo aberto veias olhos mãos mas existe tanto ruído ando desgovernada pelos clarões pelas trocas repentinas de ideia por tudo o que é brusco e pela falta de silêncio nos seus olhos que desviam dos meus porque você soube com toda a clareza e eu também soube não tinha segredo sinto falta do segredo se é que posso colocar nessas palavras eu continuo vagando pelos cômodos procurando insistentemente um canto n'onde descansar o corpo e deixar tudo ir mas nada vai tudo fica fica fica fica fica fica fica tudo acumula compreende tudo incha por dentro numa ferida inflamada que você pôde escolher entre cuidar ou enfiar o dedo no mais fundo possível você enfiou o dedo na chaga inflamada e eu não tive coragem de revidar eu sorri te abracei e te deixei ir inteiro eu fiquei aqui assistindo os carros passando na estrada eu parada eu morta de certa maneira mas o mundo não o mundo quer mais eu só posso secar os suores sacudir os tapetes olhar desgovernada saber vagar e tentar dormir vez'enquando