domingo, 30 de maio de 2010

O parto e o poeta

Cada palavra escrita pelo poeta
é um parto que este exerce 
Das juntas dos dedos, abre-se uma fenda abissal
E escorrem sílabas, frases, metáforas
Ele olha emocionado 
e vê que acaba de criar um ser vivo
Vivo, respirante, ofegante!
O poema é como um filho que se entrega ao mundo
Que se cria, a quem se dá carinho
Não há poema sem amor...
O poeta chora,
pois ali está um pedaço dele, um filho,
a sua genética, as suas palavras. 
Por mais que não descreva o poeta,
o poema é sempre o poeta.

Por isso o rascar da borracha contra o papel é sempre uma ferida
Que nem sempre cicatriza
E as bolinhas de papel jogadas no cesto de lixo
são abortos tristes, do que o poema viria a ser...


sábado, 29 de maio de 2010

Denise

"A cada verbo que você conjuga, você diz ao leitor que o tempo está passando."

Tenho conjugado tantos verbos!
Escrevo em pedaços de papéis,
os verbos que eu queria na minha vida
e os verbos que acabei de inventar.
Flexiono-os em tantos tempos
quanto posso lembrar, sem cartilhas
Tenho nesses verbos a maior esperança
de ver um relógio que existe em mim
produzindo tiques sonoros
ao marcar as horas andando
e eu marchando... em direção ao futuro!

Eu tenho dissecado os verbos diariamente
mas esse tempo do qual tanto preciso não quer passar...

Metáfora

Há uma rosa deitada sobre meu colo.
Me pergunto:
É melhor quando as pétalas caem,
uma a uma, até o fim,
ou quando a flor, silenciosamente,
murcha
resseca
enverga
e morre?

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Pedido de despedida

É muito simples:
eu te quero muito.
Eu te quero demais...
Tanto que lhe imploro
para que vá embora da minha vida.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Quem sou eu:

Sou toda latente:
tudo em mim está prestes a acontecer, talvez você possa ver;
Altamente desabável;
Minha alma é mais míope que meus olhos.

Para Alberto Caeiro

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos.
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dias de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."
(O guardador de Rebanhos - Alberto Caeiro)

-

Em aula de Literatura
respondo às perguntas de análise
do fundo do teu texto:
Tenho de desmembrar as suas sensações
Dissecar você deitado na grama
Racionalizar o teu poema.

Mas você não tinha dito
que pensar é estar doente dos olhos?
Por que tenho que pensar sua poesia?
Quero senti-la!
Quero eu deitar-me na grama contigo.
E me sentir feliz ao teu lado
Sentindo - apenas sentindo! -
o sol no corpo.

Terei de fingir:
respondo as perguntas como se te analisasse
enquanto, por dentro, sinto
E apenas sinto.

domingo, 23 de maio de 2010

O Cemitério Terrível

As tuas palavras enterradas
e eu periodicamente insisto em voltar lá, com flores nas mãos 
e lágrimas nos olhos,
reler tudo o que foi escrito: um testamento em preto e branco,
(mas também a certidão de nascimento)
as cartas que nunca foram endereçadas, mas nós já sabíamos...
Existe naquelas palavras o poder de remexer as cinzas
e eu sinto como na primeira vez que as tinha lido
Mas minha alma se enfurece e eu choro... 
(À primeira vez  a minha alma apenas estremeceu... e eu chorei...)
Eu entrego as flores, derramo algumas lágrimas
procuro os sinais de que era mentira
E corro, arrependida: 
O que estou fazendo aqui, nesse cemitério 
cinza e mal-cuidado
onde está tão triste e sepultado
o nosso findo amor?


Aos edifícios tristes

Tão grandes e tão tristes: o mundo foi cruel aos enormes arranha-céus pairando sob o céu de cobalto... Eles podem tocar o sol, mas jamais conseguirão sequer um abraço! Os prédios que às vezes pendem em direção aos vizinhos, mas são incapazes  de estender um braço e lacear o prédio ao lado. E nós, humanos, tão laceáveis, tão móveis, construímos cortinas de ferro ao nosso redor, para que os outros braços jamais se aproximem o suficiente... Nós somos tristes como arranha-céus.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Aula de Física

"A estrela do Cruzeiro do Sul mais próxima da terra está a 59 anos-luz de nós. Quando olhamos uma estrela, vemos o que ela era há 59 anos. Tudo o que há no céu é passado."
Ano-luz: distância percorrida pela luz no vácuo em um ano (aproximadamente 9,5 trilhões de km)

Vês? Os sonhadores olham para o passado...

Os teus olhos são milenares
quando os encontro entre as estrelas.
Posso passar horas a ligar os pontos
e desenhar seus traços.
O teu rosto
traçou rotas, norteou a minha noite.
Existe uma constelação com o seu nome
A anos-luz da minha varanda,
de onde te contemplo...
Os deuses antigos, os sábios
sempre lhe estiveram estudando:
Sua constelação perfeita
Que tem as estrelas mais
brilhantes
desse universo...
Espero, vó, que o meu abraço não te esteja machucando, pois a fim de te guardar sempre comigo tenho lhe abraçado forte, forte, o mais forte que eu puder. Espero que eu não esteja comprimindo demais os teus ossos frágeis, teu pulmão frágil, mas sinto tanto medo de te perder... E vi que almofadaram as maçanetas para você não se machucar, mas não consigo te abraçar menos, não consigo te largar, vó, te amo e estou com tanto medo...

domingo, 16 de maio de 2010

Minha avó passou mal

"Sabe, Jú, quando eu estava lá, sem conseguir ficar de pé, eu até lembrei do Chico Xavier, sabe quem é o Chico Xavier? É um médium, tem vários livros publicados... E ele conta que uma vez, na década de 70, ele tava viajando de avião - e você imagina como eram ruins os aviões na década de 70 - e o avião começou a chacoalhar e virar de ponta cabeça, e todos no avião começaram a gritar. A aeromoça disse para se acalmarem, que logo ia passar, mas todo mundo gritava, e o Chico começou a gritar também... As moças atrás dele rezando e ele gritando e rezando, até que alguém apareceu para ele - ele era médium, né - e disse 'Chico, o que você tá fazendo?' e ele respondeu 'Eu estou com medo, não quero morrer. Todo mundo tá gritando, eu grito junto...' ao que sua aparição lhe disse 'Chico, toma vergonha na cara, todos vocês vão morrer... Mas morra com dignidade, som sobriedade, pare de gritar'! Eu estava aqui em casa, morrendo de medo de morrer, sem conseguir pedir ajuda e gritando, gritando... Aí eu pensei 'Se for pra eu morrer, que eu morra com sobriedade, sem gritar...', Jú... Eu achei que eu ia morrer, Jú... Não desejo isso nem pra pior pessoa do mundo..."

sábado, 15 de maio de 2010

O que era uma parede hoje é janela, num canto recém-clareado da minha alma. Hoje eu descobri que é possível: talvez doa enquanto estão martelando camadas e camadas de cimento, mas chegamos ao outro lado e eis que há o sol... e eis que é bom sentir o sol entrando pelas feridas abertas entre os átomos de dor e dor e dor, quando a luz não tem medo de atravessar. Hoje retiramos as paredes e colocamos uma janela sempre aberta no meu peito, você pode olhar através e sentir meu coração pulsando, pulsando, pulsando. Quem constrói casas deveria construir casas de janela, porque não há vida sem luz. Hoje permitimos o amor.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Eu quero uma revolução!
Hoje eu acordaria vestida para guerra
E iria além de todos os outros dias:
Iria para a guerra, com as minhas armas
eu lutaria até o fim
Dentro de mim
Eu iria até o fundo
Me afogaria nesse mar profundo, mas doce, doce...
Eu sou o mar doce.
Me afogaria em mim
para conhecer as fossas abissais da minha alma
os seres vivos que eu sou,
podem até brilhar no fundo...
Hoje eu quero que tudo recomece
hoje eu quero nascer de mim mesma
para mim mesma
Hoje eu queria fazer a diferença...

domingo, 9 de maio de 2010

Construção

Eu, que tive medo de sentir dor
me construí como uma parede:
cobri a alma, o vazamento
as goteiras que escorriam constantes pelos meus olhos
cobri tudo com revestimento colorido
e selei com rejunte
Eu, pra não me entregar de vez,
me escondi por trás dos quadros...

Mas você não precisou de escavadeiras
ou de bombas de implosão...
Seus dedos derreteram o rejunte,
derreteram os quadros, a tinta...
E das fendas entre as pedras
viu brilhar um pedaço de mim que não lhe pertencia
você viu...
E foi embora.

Daonde hoje escorrem as mais verdadeiras lágrimas,
pois a minha alma é uma fratura exposta
na parede que você destruiu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Eu tenho vontade de comer poesia

Fosse o meu prato de arroz e feijão
uma bandeja de palavras
fosse a sopa
uma cumbuca de adjetivo
fosse a alface
um pronome delicado
Fosse o meu bife
uma metáfora bem construída

Fosse o meu almoço
um belo texto,
fastava-me, fartava-me sem pensar na hora
na congestão, nas calorias
No tempo perdido em silêncio
Esbanjava minha gula
Mastigava lenta e pausadamente

Mas não: olho a refeição
agradeço ao mundo por tê-la na mesa
mas não sinto vontade de experimentar:
eu quero comer poesia...