domingo, 3 de janeiro de 2010

Nascimento do poeta

JOAQUIM - Vê bem, Lorena, vê bem que teus olhos me enganam menos que os meus. O que está vendo, Lorena?
LORENA - Ora, Joaquim, não vejo muito mais do que você, vejo essa colina, e essas florzinhas que nascem ao pé das árvores, como filhos bastardos de um sonho que não aconteceu. Vejo esse sol, lutando para sobreviver ao afago das nuvens, e vejo essas nuvens, intrometendo-se aos caminhos do sol. E vejo a você, Joaquim, tão perdido quanto essas formigas passeando ao redor do meu pé, que se pôs no meio de sua trilha.
JOAQUIM - Percebe? Você me disse as coisas que eu não pude ver. Talvez, Lorena, talvez eu esteja tão faminto por algo que não sei o que é que tenha me cegado e não percebi! Será que você pode me ajudar a sair daqui, Lô? Escaparia comigo?
LORENA - E escapar para onde, homem? Precisamos ficar aqui, para ver os milagres que estão prestes a nos acontecer. Você nunca sabe quando um milagre vai acontecer. E se as flores voltarem à terra, entrarem pela raiz das árvores e brotarem novamente na copa, quase beijando o sol, que se já terá desanuviado?
JOAQUIM - E as formigas, Lolô, as formigas terão reencontrado o seu rumo?
LORENA - As formigas precisarão de um caminho, e eu não posso fazer esse milagre.
JOAQUIM - Pois os milagres que você me deu são falsos! Tão falsos que as minhas lágrimas também perderam o próprio rumo, e estão vagando descontroladas pelo meu rosto! E eu nem sei o que estão fazendo aqui, não me dói nada...
LORENA - Te dói tudo, Quim. Te dói o mundo, e eu te entendo, porque não há aspirina que resolva, não há anestésico ou tapa na cara que te faça passar a dor... É por te entender que eu preciso ficar aqui com você, mas também preciso que você fique aqui comigo, e nós esperaremos juntos que a dor passe. É a dor de existir, Joaquim.
JOAQUIM - Mas eu existo há muito, e nunca tinha me doído tanto.
LORENA - Não basta existir. É necessário descobrir que se existe. E então dói.
JOAQUIM - Ah, Lô... E o que eu posso fazer para passar?
LORENA - Procure um alento...
JOAQUIM - Um alento? Para a minha dor?
LORENA - Sim, procure algo que lhe faça esquecer, um grande amor, palavras cruzadas, filosofia, a sorte, esse fim de tarde, salvar alguma outra pessoa da dor que ela sente, tentar um novo dia, chorar as lágrimas até que faça sentido...
JOAQUIM - Não... eu preciso procurar mais perto, mais... mais perto, mais perto, mais, mais... Dentro, preciso encontrar dentro de mim. Isso que vai me desabrochar n'algo que me deixe em paz. Eu preciso encontrar dentro de mim algo que me dê paz, algo que me faça acreditar maior, algo que me faça acreditar que existir vale a pena! Preciso encontrar o que é essa angústia, o que é essa bola dentro do meu estômago, como eu faço sair? Preciso me encontrar com a minha alma, ouvir o que ela tem a dizer... Tirar de dentro de mim...
LORENA - Quim... Talvez você pudesse tentar... Não sei, é um caminho sem volta, talvez dolorido, mesmo que florido de flores poucos bastardas. Nos dias de sol, o sol lhe queimará até os pulmões, e quando chover você vai sentir o teu próprio corpo escorrendo das gotas. Mas talvez essa sua bola no estômago, a sua angústia seja necessidade de palavras: talvez o seu corpo esteja te mandando, te ordenando que você escreva, escreva, escreva, escreva, meu amor! Seja poeta, Joaquim, seja poeta e entregue ao mundo suas sensações, Joaquim, seja poeta.

Nenhum comentário: